Tempo livre


A questão do tempo livre — o que as pessoas fazem com ele, que chances eventualmente oferece o seu desenvolvimento — não pode ser formulada em generalidade abstrata. A expressão, de origem recente — aliás, antes se dizia ócio, e este era privilégio de uma vida folgada e, portanto, algo qualitativamente, distinto e muito mais grato —, opõe-se a outra: à de tempo não-livre, aquele que é preenchido pelo trabalho e, poderíamos acrescentar, na verdade, determinado de fora.
O tempo livre é acorrentado ao seu oposto. Essa oposição, a relação em que ela se apresenta, imprime-lhe traços essenciais. Além do mais, muito mais fundamentalmente, o tempo livre dependerá da situação geral da sociedade. Mas esta, agora como antes, mantém as pessoas sob um fascínio. Decerto, não se pode traçar uma divisão tão simples entre as pessoas em si e seus papéis sociais. Em uma época de integração social sem precedentes, fica difícil estabelecer, de forma geral, o que resta nas pessoas, além do determinado pelas funções. Isso pesa muito sobre a questão do tempo livre. Mesmo onde o encantamento se atenua e as pessoas estão ao menos subjetivamente convictas de que agem por vontade própria, isso ainda significa que essa vontade é modelada por aquilo de que desejam estar livres fora do horário de trabalho.
A indagação adequada ao fenômeno do tempo livre seria, hoje, esta: “Com o aumento da produtividade no trabalho, mas persistindo as condições de não-liberdade, isto é, sob relações de produção  em que as pessoas nascem inseridas e que, hoje como antes, lhes prescrevem as regras de sua existência, o que ocorre com o tempo livre?” Se se cuidasse de responder à questão sem asserções ideológicas, tornar-se-ia imperiosa a suspeita de que o tempo livre tende em direção contrária à de seu próprio conceito, tornando-se paródia deste. Nele se prolonga a não-liberdade, tão desconhecida da maioria das pessoas não-livres como a sua não-liberdade em si mesma.
T. W. Adorno. Palavras e sinais, modelos críticos 2. Maria Helena Ruschel (Trad.). Petrópolis: Vozes, 1995, p. 70-82 (com adaptações).

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